quinta-feira, 21 de maio de 2015

Aprecie com moderação

Olho para o relógio e por acaso são 4:20.
Às 4:20, de quase vinte anos atrás, me escondia dos pais. Hoje eu próprio sou um pai, me escondo dos filhos.
A proibição não permite que eu possa fazer uso da cannabis, sem criar o problema de ter que explicar para as crianças a licitude dos meus atos. Quem sabe em alguns anos a coisa mude de figura e eu possa conversar abertamente sobre o assunto sem que eles me considerem um marginal.
Cada um tem sua história com a cannabis. Da minha experiência conclui que para aproveitar o que de melhor ela tem a oferecer é preciso equilíbrio. A bem da verdade, isto não é exclusividade da cannabis: tudo na vida deve ser equilibrado.
O trabalho deve ser equacionado com o lazer, para que um dê sentido ao outro e permita que as horas dedicadas a cada uma dessas atividades sejam aproveitadas com eficiência.
Da mesma maneira, as atividades físicas não prescindem do repouso. A saúde depende dos dois.
Não acho que com a cannabis a coisa seja diferente. Quando exagero na dose, sinto que passo do ponto em que obteria seus benefícios e passo a perceber prejuízos em outras áreas da vida.
Na dose certa, a cannabis aguça a minha sensibilidade para perceber coisas que passariam despercebidas na confusão do dia-a-dia. Ao me fazer perceber essas coisas, muda meu pensamento sobre verdades absolutas e preconceitos. No final, acaba me tornando uma pessoa mais tolerante na vida. A sociedade agradece.
Quando vou além da dose, essas coisas que antes passavam despercebidas acabam dominando meu pensamento, ganhando uma importância e urgência que são irreais dentro do meu contexto de vida. Acabam desviando demais o foco daquilo que considero o mais importante.
Costumo ter “ondas erradas” em épocas que estou fumando muito. E nas horas em que não estou chapado, a vida parece meio sem graça.
É aquela história: a diferença entre o remédio e o veneno é só a dose.
Assim, meu uso da cannabis é religioso (apesar de me considerar ateu) e medicinal. Mantenho a dose de um baseado por semana, a qual me parece suficiente para que os demais aspectos da vida não sejam atrapalhados por ela. A única diferença entre a minha conduta e a de quem opta por tomar um valium é o fato de que a proibição não permite que eu compre meu remédio na farmácia.
A minha justa medida é um baseado por semana. Com esta dose, consigo manter paz de espírito frente às exigências cotidianas. Com um beck por semana consigo não ficar imobilizado diante das dificuldades da vida ou empedernido por elas.
Não tenho nenhuma intenção de dizer que você deve fazer do meu jeito ou de outro. Não tem certo e errado nessa história, existe o que dá certo para você e o que não dá.

Como disse antes, cada um tem sua história com a cannabis. Eu só passo falar da minha. Se quiser compartilhar sua experiência, sem moralismo, poste um comentário abaixo.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Dog Marley

Depois do sucesso comercial do livro e do filme Marley & Eu, naturalmente, muitos labradores vieram a ser chamados de Marley. Além disso, cachorros de todas as outras raças também foram assim batizados, o que acaba dizendo algo sobre seus donos: ou o sujeito não tem mesmo criatividade ou está dando uma bela de uma pala.
Poucos cães, porém, parecem tão dignos de tal alcunha quanto o meu velho sabujo. Vou explicar:
Morei alguns anos em Porto Alegre e, naqueles dias, enfrentei alguma dificuldade de adaptação. Não conhecia quase ninguém na cidade e passava a maior parte do tempo na internet, me comunicando com as pessoas que havia deixado para trás. Fazia apenas alguns freelas, de modo que não faltava tempo livre e sobrava tédio.
Em tais circunstâncias, sem ter qualquer referência na cidade. Invariavelmente passava por longos períodos de seca (em todas as conotações que a palavra seca pode ter). Em tais ocasiões, a sensação de vazio aumentava exponencialmente, e eu me pegava bebendo mais Jack Daniel’s do que deveria.
A solidão acabou me levando a arrumar um cachorro de companhia, que também me obrigaria a adotar algumas práticas mais saudáveis, já que me forçaria a sair de casa e fazer exercícios. O cão me levaria para passear.
Adquiri um Basset Hound o qual, seguindo a tendência canábica, chamei Marley.
Desde os primeiros dias, o cão foi se acostumando com a maresia da minha quitinete. Tenho certeza que ele sentia os efeitos da fumaça, pois era só acender a vela que ele sentava sobre os meus pés, apoiava a cabeça no meu joelho e ficava olhando para a minha cara com aquela expressão canina de curiosidade e melancolia, até que dormia profundamente. Às vezes nem mesmo deitava para dormir, simplesmente continuava na mesma posição até que minha perna ficasse dormente.
Invariavelmente, ele acordava babando de fome e se esbaldava no pote de ração. Fome do cão.
Nos passeios, nunca consegui aplicar aquelas técnicas do Cesar Millan, que na televisão funcionam tão bem. Marley só andava puxando muito a guia e me rebocando junto. Puxava com tanta força que seus 25 kg quase derrubavam os meus 100 kg.
Algumas vezes eu deixava a guia frouxa para ver aonde ele queria chegar. Normalmente ele estava ansioso para cagar ou mijar em alguma moita ou poste. Outras vezes ele corria atrás de uma cadela no cio.
Em uma tarde, o ritual se repetiu. Dei corda e o bicho foi embora. Só que, desta vez, ele passou direto por todos os canteiros e árvores, rumo ao desconhecido. Fui deixando, para ver no que isso ia dar. Acabamos entrando em uma rua sem saída, com diversas pequenas casas sem muro e sem quintal. Ele continuava andando em direção ao final da rua. Conclui que ele iria chegar até o muro pintado com motivos da Copa do Mundo de 1998 que limitava a vila, dar uma longa mijada e voltar pelo caminho de onde veio.
Não chegou até o tal muro, pois parou em frente a uma das últimas casas do lado direito da rua, de tijolos aparentes pintados de amarelo e janelas de madeira.
Indo atrás dele, vendo de longe, pensei que poderia haver alguma cachorra na casa. No entanto, chegando mais perto, pude sentir o inconfundível cheiro da marola vindo de dentro.
Olhei para a fuça do bicho pensando: cachorro maconheiro safado! Embora só tenha dito isso em voz alta dentro da minha cabeça, tenho certeza que ele entendeu o recado, pois começou a olhar para mim ofegante, com a língua para fora, e a abanar seu rabo freneticamente. Cachorro tem dessas coisas.
Era um daqueles dias de seca, de forma que passei uns minutos dando uma boa olhada na movimentação da casa. Andava de um lado para o outro da rua, tentando disfarçar minha curiosidade, mas não vi nada nem ninguém entrando ou saindo. Conclui que era só a casa de algum maconheiro um pouco mais felizardo.
A partir daí, como não tinha mesmo opção melhor, inclui nos trajetos de passeio, uma passagem em frente a tal casa. Uma leve e inofensiva espreita.
Um dia, notei um pequeno grupo em frente à casa. Segui para lá e notei que eram três “gurias” e um cara, namorado de uma delas. Todos com vinte e poucos anos.
As meninas começaram a brincar com o cão. Uma das cenas mais lindas é a de uma gatinha brincando com seu cão, sem frescura ou cerimônia, no meio da rua. Aliás, se eu soubesse como cachorros são chamarizes de gatas, teria arrumado um na adolescência.
Ao perguntarem o nome do cachorro, o nome Marley soou como uma verdadeira senha. Um código prontamente reconhecido pelos malucos que logo mudaram o rumo da prosa e, quando dei por mim, uma rodinha já se formara ao redor do cão e um baseado começou a circular. Olhei ao redor e vi que a rua estava vazia. Dei uma baforada que me deixou empenado na hora.
Descobri que uma das garotas, a Flávia, morava na tal casa, que era emprestada de um tio dela. Ela viera do interior do estado fazer faculdade de psicologia na UFRGS.
Quando já estávamos todos bastante amigáveis e o cachorro já deitava para dormir. Entramos na casa e Flávia coloca para tocar no iPod o disco IV do Led Zeppelin. Gostei dela com os primeiros riffs de Black Dog e o que aconteceu até chegarmos a When the Levee Breaks você pode imaginar.

Moral da história: crianças, maconha te levará a falar com estranhos e eventualmente fazer sexo com um deles.


Imoral da história: Marley salvou o dia!


quarta-feira, 31 de julho de 2013

Entre mundos

Sandman (o Morfeu de Neil Gaiman)
Sem sair do lugar é possível viajar. Mergulhar no mar do inconsciente e emergir em uma praia etérea em alguma ilha no Sonhar.
Os olhos abertos são a ponte entre o Real e o imaginado. São como âncoras impedindo que a nau fique à deriva.
Tenha consciência de que nada é concreto e feche os olhos. Permita-se ser levado por mares revoltos e correntezas. É tudo passageiro. O pior que pode acontecer é você cair no sono.
Nesse mundo virtual há apenas um rei. Procure-o nos confins desse sonho lúcido e o encontrará no fundo de um lago ou em um espelho na parede. Conhece-te a ti mesmo.
As coisas todas têm múltiplos significados. Alguns só são compreendidos quando vistos por um determinado viés poucas vezes acessível pela razão. As interpretações podem ser válidas no Sonhar e no Real, ou válidas somente em um desses mundos. Mas nada é desprezível. Tudo se transforma em autoconhecimento, de forma que quando você retornar da sua expedição, alguma coisa trará consigo.
Muitos afirmam que não têm tempo para isso, pois têm uma vida muito corrida, cheia de responsabilidades e obrigações, não tendo tempo para bobagens. No entanto, quantos desses não perdem horas preciosas de seus dias compartilhando besteiras no facebook, destruindo balinhas no Candy Crush, ou (o pior) assistindo Big Brother na TV.
Essas pessoas serão as primeiras a te chamar de louco ou de idiota. Não as culpe, pois elas apenas estão bastante integradas à realidade, pouco atentas aos seus próprios anseios e necessidades. 
Aproveite o conhecimento adquirido e reverta-o em produtividade, pois o Real precisa ser modificado. A realidade está contaminada por sonhos de consumo, delírios de beleza, utopias profissionais, tudo nos afastando do que é essencial (do que nos faz humanos), e das coisas simples e fantásticas do mundo.
Pare por alguns minutos e pense na vida que se leva. No que é importante e no que é supérfluo para você. Livre-se da bagagem desnecessária e siga viagem.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Carl Sagan e a cannabis

Sagan dava uma bola de vez em quando...
Em 1969, sob o pseudônimo de Mr. X, Carl Sagan escreveu um depoimento para o livro Marihuana Reconsidered, de Lester Grinspoon, publicado em 1971.
Após sua morte, seu amigo e autor do livro esclareceu a informação para seu biógrafo, Keay Davidson. A publicação da biografia de Carl Sagan, em 1999, trouxe a atenção da mídia para esse aspecto pouco conhecido da vida de Sagan.
Pouco depois de sua morte, sua viúva, Ann Druyan confirmou a história, doou parte de sua herança ao movimento pró-legalização da cannabis na Califórnia e se tornou uma das presidentes da NORML, uma fundação dedicada a reforma das leis sobre maconha.
É bastante interessante observar o pensamento de uma das mais importantes mentes do século XX acerca dos efeitos da maconha, da influência da planta em seus trabalhos e da proibição.
Não encontrei na internet, em nenhuma parte, a íntegra deste ensaio em português, razão pela qual procedi à livre tradução do texto. Como meus conhecimentos de inglês são relativamente parcos, peço desculpa por qualquer falha. O texto original pode ser encontrado aqui: http://hermiene.net/essays-trans/mr_x.html

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Aconteceu há cerca de dez anos. Havia chegado a um momento na vida consideravelmente tranquilo. Começava a perceber que havia mais na vida além da ciência. Vivia um tempo de despertar de consciência social. Era um momento em que estava aberto a novas experiências. Era amigo de um grupo de pessoas que fumava cannabis de forma ocasional, mas com indisfarçável prazer.

Inicialmente eu não pretendia participar de tais eventos, mas a aparente euforia que a cannabis produzia, aliada ao fato de que não percebia vício fisiológico na planta, acabaram me convencendo a tentar.

Minhas experiências iniciais foram absolutamente decepcionantes: não houve efeito algum, com o que comecei a cogitar a hipótese de a cannabis ter apenas efeito placebo, dependendo mais de sugestão e hiperventilação que de química.

Todavia, após cerca de cinco ou seis tentativas frustradas, aconteceu.

Estava deitado na sala de estar da casa de amigos indolentemente examinando os padrões formados no teto pela sombra de um vaso de planta (que não era cannabis!).

Subitamente percebi que estava examinando uma intrincada e detalhada miniatura de um fusca, distintamente desenhada pelas sombras. Estava bastante cético sobre tal percepção, e tentei encontrar inconsistências entre fuscas e o que eu vi no teto. Porém, estava tudo lá, desde calotas e placa até a pequena alça utilizada para abrir o bagageiro.

Quando fechei os olhos, fiquei atordoado ao perceber que passava um filme debaixo de minhas pálpebras. Lampejo... uma cena rural bucólica com uma casa de fazenda vermelha, céu azul, nuvens brancas, um caminho sinuoso amarelo sobre colinas verdes indo até o horizonte.

Lampejo... mesma cena, casa laranja, céu marrom, nuvens vermelhas, caminho amarelo, campos violetas... Lampejo... Lampejo... Lampejo.

Os lampejos vinham a cada batimento cardíaco. Cada lampejo trazia à visão a mesma cena bucólica, mas cada vez com diferentes cores... diferentes e profundas matizes, mas surpreendentemente harmoniosas na justaposição.

Desde então venho fumando ocasionalmente e aproveitando da melhor forma possível.

A cannabis amplia sensibilidades adormecidas e produz o que, para mim, são os efeitos mais interessantes, os quais vou explicar sucintamente.

Lembro-me de outra experiência visual com a cannabis, na qual, observando a chama de uma vela, descobri camuflado no coração do fogo, de pé com magnífica indiferença, o cavalheiro espanhol de chapéu preto que aparece no rótulo da garrafa do xerez Sandeman.

Olhar para o fogo entorpecido, aliás, especialmente através de um caleidoscópio, é uma experiência extraordinariamente bela e comovente.

Devo explicar que, em nenhum desses momentos, pensei que essas coisas realmente estivessem lá. Eu sabia que não havia fusca no teto ou sujeito do Sandeman na chama. E nessas experiências não vejo contradições. Há uma parte de mim criando percepções que, na vida cotidiana, seriam bizarras; há uma outra
parte de mim que é como se fosse um observador. Cerca de metade do prazer vem da minha parte observadora apreciando o trabalho da minha parte criadora. Eu sorrio, ou às vezes até mesmo caio na gargalhada com as imagens dentro das minhas pálpebras.

Nesse sentido, suponho que a cannabis seja psicotomimética, mas não sinto nenhum dos pânicos ou terrores que acompanham algumas psicoses. Possivelmente isto é porque eu sei que aquilo é minha própria viagem e que eu posso voltar ao normal rapidamente quando quiser.

Enquanto minhas percepções iniciais eram todas visuais e, curiosamente, carente de imagens de seres humanos, esses dois itens mudaram com o passar dos anos. Hoje, um simples cigarro é o suficiente para me deixar entorpecido. Testo se estou entorpecido fechando os olhos e procurando pelos lampejos, que vêm bem antes de qualquer alteração visual ou em outras percepções. Pensaria que se trata de um problema de sinal-ruído: o nível de ruído visual estaria muito baixo com meus olhos fechados.

Outro aspecto teórico interessante é a prevalência – pelo menos nas imagens lampejantes – de desenhos animados: só os contornos de figuras e caricaturas, não fotografias. Acho que é uma simples questão de compressão de informação; seria impossível entender o conteúdo total de informações de uma fotografia comum (digamos, 108 bits) em uma fração de segundo, que é o tempo do lampejo. E a experiência do lampejo é projetada (se é que posso usar esta palavra) para uma apreciação instantânea. O artista e o espectador são um só.

Isto não significa que as imagens não são maravilhosamente detalhadas e complexas.

Recentemente vi uma cena na qual duas pessoas estavam conversando e as palavras que eles estavam dizendo se formavam e desapareciam em amarelo sobre suas cabeças, em aproximadamente uma frase por batimento cardíaco. Dessa maneira, era possível acompanhar a conversa. Ao mesmo tempo, de vez em quando, uma palavra formada por letras vermelhas aparecia sobre suas cabeças no meio das amarelas, perfeitamente no contexto da conversa; mas lembrando das palavras em vermelho, elas representavam um conjunto totalmente diferente de declarações, que seria a percepção do que havia de fundamental na conversa. Todo o conjunto de imagens que descrevi aqui, de pelo menos 100 palavras amarelas e 10 palavras vermelhas, durou menos de um minuto.

A experiência com a cannabis aguçou minha apreciação pela arte, um tema que nunca havia apreciado tanto. O entendimento da intenção do artista, que consigo alcançar quando estou entorpecido, por vezes continua quando não estou mais. Essa é uma das muitas fronteiras humanas que a cannabis me ajudou a atravessar.

Há, também, algumas epifanias relacionadas a arte – não sei se são verdadeiras ou falsas, mas são divertidas. Por exemplo, passei algum tempo entorpecido examinando a obra do surrealista belga Yves Tanguey. Alguns anos mais tarde, após um longo mergulho no Caribe, cheguei exausto a uma praia formada a partir da erosão de um recife de coral nas proximidades. Contemplando os fragmentos de coral arqueados que formavam a praia, vi diante de mim uma vasta pintura de Tanguey. Talvez Tanguey tenha visitado tal praia em sua infância.

Um apreço muito similar pela música também me foi concedido. Pela primeira vez fui capaz de escutar os diferentes fragmentos pelos quais uma harmonia de três partes é formada, além da riqueza do contraponto.

Desde então descobri que os músicos profissionais podem facilmente tocar muitas partes separadas simultaneamente na sua cabeça, mas para mim essa foi a primeira vez. Mais uma vez, a experiência de aprendizagem quando entorpecido migrou, pelo menos até certo ponto, para o meu estado sóbrio.

A apreciação de comida amplificou-se. Emergem sabores e aromas que normalmente por qualquer razão parecemos estar demasiado ocupados para perceber. Posso dar atenção total ao paladar. Uma batata ganha textura, corpo e sabor como as outras batatas, mas muito mais intensos.

A cannabis também aumenta a apreciação do sexo – provoca uma sensação única e retarda o orgasmo: em parte distraindo-me com a profusão de imagens que passa pelos meus olhos. A duração do orgasmo parece aumentar imensamente, mas isso pode ser a experiência usual da expansão temporal que se dá ao fumar cannabis.

Em geral não me considero uma pessoa religiosa, mas há um aspecto religioso em algumas viagens. O aumento da sensibilidade em todas as áreas me proporcionou um sentimento de comunhão com tudo o que me cerca, sendo seres inanimados ou não. Às vezes um tipo de percepção existencial do absurdo me domina e vejo com uma horrível certeza as hipocrisias, minhas e de meus semelhantes. E em outros momentos há uma diferente sensação de absurdo, uma consciência lúdica e lunática. Ambos os sentidos de absurdo podem se comunicar e algumas das viagens mais gratificantes que tive se deram com conversa e partilha de percepções e humor.

A cannabis nos traz a consciência do que nós gastamos uma vida inteira sendo treinados para ignorar, esquecer e excluir de nossas mentes.

A sensação de como o mundo realmente é pode ser enlouquecedora; a cannabis me trouxe alguns sentimentos sobre o que é ser louco e de como usamos essa palavra "louco" para evitar pensar sobre coisas que são muito dolorosas para nós.

Na União Soviética dissidentes políticos são rotineiramente colocados em manicômios. O mesmo tipo de coisa, um pouco mais sutil, talvez, ocorra por aqui: 'você ouviu o que Lenny Bruce disse ontem? Ele deve ser louco.’

Entorpecido de cannabis descobri que há alguém dentro daquelas pessoas que chamamos de louco.

Quando estou entorpecido me vejo capaz de penetrar no passado, recordar memórias de infância: amigos, parentes, brinquedos, ruas, sons e cheiros de uma área antes esquecida. Posso reconstruir eventos de minha infância que na época não foram inteiramente compreendidos.

Muitas, mas não todas, viagens de cannabis têm nelas um simbolismo significativo para mim que não vou tentar descrever aqui. Uma espécie de mandala. A associação livre a essa mandala, tanto visualmente como em forma de brincadeiras com as palavras, produziu uma rica série de epifanias.

Há um mito a respeito de tais elevações: o usuário tem a ilusão de uma grande epifania, mas que não sobrevive ao escrutínio da manhã. Estou convencido de que este é um erro, e que os insights devastadores alcançados quando entorpecido são percepções reais; o grande problema é colocar essas idéias em uma forma aceitável para a pessoa bastante diferente que somos quando estamos sóbrios no dia seguinte. Alguns dos meus mais árduos trabalhos foram transpor tais idéias em uma fita ou escrevê-las. O problema é que dez idéias ainda mais interessantes ou imagens têm de ser perdidas no esforço de uma gravação. É fácil entender porque alguém pode pensar que é um desperdício de esforço ter todo este trabalho para trazer o pensamento para a sobriedade, uma espécie de intrusão da Ética Protestante. Mas, como eu vivo quase toda a minha vida sóbrio, eu fiz tal esforço – com sucesso, eu acho. 

Aliás, acho que as idéias razoavelmente boas podem ser lembradas no dia seguinte, mas somente se algum esforço tiver sido feito para trazê-las para a realidade de alguma maneira. Se eu escrever o insight ou disser a alguém, então eu posso lembrar sem ajuda na manhã seguinte, mas se eu apenas digo a mim mesmo que eu devo fazer um esforço para lembrar, eu nunca lembro.

Acho que a maioria das idéias que tenho quando estou entorpecido concernem a questões sociais, uma área bastante diferente daquela pela qual sou geralmente conhecido.

Lembro-me de uma ocasião em que, ao tomar um banho com a minha esposa enquanto entorpecido, tive uma ideia sobre as origens e invalidades do racismo em termos de curvas de distribuição gaussiana. De certo modo, foi um ponto óbvio, mas raramente falado.

Desenhei as curvas com sabão na parede do chuveiro e fui escrever a idéia. Uma idéia levou a outra e, ao final de cerca de uma hora de muito trabalho duro, descobri que havia escrito onze ensaios curtos sobre uma ampla gama de temas sociais, políticos, filosóficos, humanos e biológicos. Devido a problemas de espaço, não posso entrar em detalhes sobre tais ensaios, mas, considerando todos os sinais externos, tais como reações públicas e comentários de especialistas, eles parecem conter ideias válidas. Utilizei-os em aulas inaugurais em universidade, palestras públicas, e em meus livros.

Mas deixe-me ao menos tentar dar o sabor de tal visão e os seus acompanhamentos. Uma noite, entorpecido, eu estava investigando minha infância (um pouco de auto-análise) e fazendo o que me pareceu ser o progresso muito bom. Então parei e pensei quão extraordinário havia sido Sigmund Freud que, sem ajuda de drogas, foi capaz de alcançar sua própria notável auto-análise. Mas então me bateu como um trovão que eu estava errado, que Freud passou a década anterior à sua auto-análise como um experimentador e entusiasta da cocaína, e pareceu-me bastante evidente que os insights genuínos da psicologia que Freud trouxe ao mundo foram, pelo menos em parte, derivados de sua experiência com drogas. Eu não tenho ideia se isso é de fato verdadeiro, ou se os historiadores de Freud concordariam com esta interpretação, ou mesmo se tal ideia foi publicada no passado, mas é uma hipótese interessante e que passa no escrutínio do mundo dos caretas.

Lembro-me da noite em que, de repente, percebi como era ser louco, ou noites em que meus sentimentos e percepções tiveram natureza religiosa. Eu tinha um sentido muito preciso que estes sentimentos e percepções, escritos casualmente, não resistiriam ao escrutínio crítico habitual que é próprio de meu ofício como um cientista. Se eu encontrar, de manhã, uma mensagem de mim mesmo a noite, a informar-me que há um mundo ao nosso redor que mal sentimos, ou que podemos nos tornar um só com o universo, ou mesmo que certos políticos são homens desesperadamente assustados, eu posso tender a não acreditar; mas quando estou entorpecido, sei sobre essa descrença. E então tenho uma fita na qual eu exorto-me a levar a sério tais declarações. Eu digo "Ouça com atenção, seu filho da puta da manhã! Este material é real!" Tento mostrar que minha mente está trabalhando bem; eu lembro o nome de um colega de colégio no qual não pensava há trinta anos; descrevo a cor, a tipografia, e o formato de um livro que está em um outro cômodo. E estas memórias passam pelo escrutínio crítico da manhã. Estou convencido de que há níveis de genuína e válida percepção disponíveis com cannabis (e provavelmente com outras drogas), que são, devido aos defeitos da nossa sociedade e do nosso sistema educacional, indisponíveis para nós sem essas drogas.

Tal observação se aplica não apenas à auto-consciência e a atividades intelectuais, mas também para as percepções a respeito de pessoas reais, uma sensibilidade muito maior para a expressão facial, entonação e escolha de palavras que às vezes produz um relacionamento tão próximo que é como se duas pessoas estivessem lendo as mentes um do outro.

A cannabis permite que não-músicos saibam um pouco sobre como é ser um músico, e que não-artistas compreendam as alegrias da arte. Mas não sou nem um artista, nem um músico. E o meu próprio trabalho científico? Embora me depare uma curiosa indisposição para pensar em questões profissionais quando estou entorpecido (as aventuras intelectuais atraentes sempre parecem estar em qualquer outra área) faço um esforço consciente para pensar em pequenos e correntes problemas particularmente difíceis da minha área. Isto funciona, pelo menos, em algum nível. Acho que posso sustentar, por exemplo, uma série de fatos experimentais que parecem ser mutuamente inconsistentes. Até agora, tudo bem. Pelo menos o “recall” funciona. Em seguida, na tentativa de conceber uma forma de conciliar tais fatos díspares, acabo chegando a uma possibilidade muito bizarra, que tenho certeza que eu nunca teria pensado sóbrio. Já escrevi um artigo que menciona, de passagem, essa ideia. Acho muito improvável que tais possibilidades sejam verdadeiras, mas elas têm consequências que são testáveis experimentalmente, o que é a marca registrada de uma teoria aceitável.

Já mencionei que na experiência com a cannabis há uma parte de sua mente que continua a ser um observador imparcial, que é capaz de trazê-lo de volta da viagem depressa, se necessário.

Em algumas ocasiões fui obrigado a dirigir no trânsito pesado enquanto entorpecido. Consigo administrar tal situação sem nenhuma dificuldade, apesar de ter alguns pensamentos sobre a cor vermelho-cereja maravilhosa dos semáforos. Descubro que após dirigir não estou absolutamente entorpecido. Não há lampejos no interior das minhas pálpebras. Se você está chapado e seu filho está chamando, você pode respondê-lo da forma tão competente como costuma fazê-lo. Não defendo a condução quando entorpecido, mas posso dizer por experiência pessoal, que certamente é possível fazê-lo. Minha viagem é sempre reflexiva, pacífica, intelectualmente estimulante, e sociável. Ao contrário da maioria das embriaguezes de álcool, nunca há ressaca.

Através dos anos percebi que pequenas quantidades de maconha são suficientes para produzir o mesmo grau de torpor, e em uma sala de cinema, recentemente, descobri que poderia ficar entorpecido apenas pela inalação da fumaça de maconha que permeava a sala.

Há um aspecto muito positivo na auto-administração de cannabis. Cada tragada é uma dose muito pequena; o intervalo de tempo entre a inalação e a sensação de seu efeito é pequeno; e não há desejo de mais após a instauração da onda. Acho que a razão, R, entre o tempo de sentir a dose tomada e o tempo necessário para tomar uma dose excessiva é uma grandeza importante. R é muito grande para o LSD (que eu nunca tomei) e razoavelmente curto para a cannabis. Pequenos valores de R devem ser uma medida de segurança de drogas psicodélicas. Quando a maconha for legalizada, espero encontrar esta relação como um dos parâmetros impresso na embalagem.

Espero que este momento não esteja tão distante; a ilegalidade da maconha é escandalosa. É o impedimento para a plena utilização de uma droga que ajuda a produzir a serenidade e discernimento, sensibilidade e companheirismo, tão desesperadamente necessários neste mundo cada vez mais louco e perigoso.


Fonte: Marihuana Reconsidered, Lester Grinspoon, M.D., Harvard University Press Cambrifge, Massachusetts, 1971, pp. 110-116.