Depois do sucesso comercial do livro e do filme Marley &
Eu, naturalmente, muitos labradores vieram a ser chamados de Marley. Além
disso, cachorros de todas as outras raças também foram assim batizados, o que
acaba dizendo algo sobre seus donos: ou o sujeito não tem mesmo criatividade ou
está dando uma bela de uma pala.
Poucos cães, porém, parecem tão dignos de tal alcunha quanto
o meu velho sabujo. Vou explicar:
Morei alguns anos em Porto Alegre e, naqueles dias,
enfrentei alguma dificuldade de adaptação. Não conhecia quase ninguém na cidade
e passava a maior parte do tempo na internet, me comunicando com as pessoas que
havia deixado para trás. Fazia apenas alguns freelas, de modo que não faltava
tempo livre e sobrava tédio.
Em tais circunstâncias, sem ter qualquer referência na
cidade. Invariavelmente passava por longos períodos de seca (em todas as
conotações que a palavra seca pode ter). Em tais ocasiões, a sensação de vazio
aumentava exponencialmente, e eu me pegava bebendo mais Jack Daniel’s do que
deveria.
A solidão acabou me levando a arrumar um cachorro de
companhia, que também me obrigaria a adotar algumas práticas mais saudáveis, já
que me forçaria a sair de casa e fazer exercícios. O cão me levaria para
passear.
Adquiri um Basset Hound o qual, seguindo a tendência
canábica, chamei Marley.
Desde os primeiros dias, o cão foi se acostumando com a
maresia da minha quitinete. Tenho certeza que ele sentia os efeitos da fumaça,
pois era só acender a vela que ele sentava sobre os meus pés, apoiava a cabeça
no meu joelho e ficava olhando para a minha cara com aquela expressão canina de
curiosidade e melancolia, até que dormia profundamente. Às vezes nem mesmo
deitava para dormir, simplesmente continuava na mesma posição até que minha
perna ficasse dormente.
Invariavelmente, ele acordava babando de fome e se esbaldava
no pote de ração. Fome do cão.
Nos passeios, nunca consegui aplicar aquelas técnicas do
Cesar Millan, que na televisão funcionam tão bem. Marley só andava puxando
muito a guia e me rebocando junto. Puxava com tanta força que seus 25 kg quase
derrubavam os meus 100 kg.
Algumas vezes eu deixava a guia frouxa para ver aonde ele
queria chegar. Normalmente ele estava ansioso para cagar ou mijar em alguma
moita ou poste. Outras vezes ele corria atrás de uma cadela no cio.
Em uma tarde, o ritual se repetiu. Dei corda e o bicho foi
embora. Só que, desta vez, ele passou direto por todos os canteiros e árvores,
rumo ao desconhecido. Fui deixando, para ver no que isso ia dar. Acabamos
entrando em uma rua sem saída, com diversas pequenas casas sem muro e sem
quintal. Ele continuava andando em direção ao final da rua. Conclui que ele
iria chegar até o muro pintado com motivos da Copa do Mundo de 1998 que
limitava a vila, dar uma longa mijada e voltar pelo caminho de onde veio.
Não chegou até o tal muro, pois parou em frente a uma das
últimas casas do lado direito da rua, de tijolos aparentes pintados de amarelo e
janelas de madeira.
Indo atrás dele, vendo de longe, pensei que poderia haver
alguma cachorra na casa. No entanto, chegando mais perto, pude sentir o
inconfundível cheiro da marola vindo de dentro.
Olhei para a fuça do bicho pensando: cachorro maconheiro
safado! Embora só tenha dito isso em voz alta dentro da minha cabeça, tenho certeza
que ele entendeu o recado, pois começou a olhar para mim ofegante, com a língua
para fora, e a abanar seu rabo freneticamente. Cachorro tem dessas coisas.
Era um daqueles dias de seca, de forma que passei uns
minutos dando uma boa olhada na movimentação da casa. Andava de um lado para o
outro da rua, tentando disfarçar minha curiosidade, mas não vi nada nem ninguém
entrando ou saindo. Conclui que era só a casa de algum maconheiro um pouco mais
felizardo.
A partir daí, como não tinha mesmo opção melhor, inclui nos
trajetos de passeio, uma passagem em frente a tal casa. Uma leve e inofensiva
espreita.
Um dia, notei um pequeno grupo em frente à casa. Segui para
lá e notei que eram três “gurias” e um cara, namorado de uma delas. Todos com
vinte e poucos anos.
As meninas começaram a brincar com o cão. Uma das cenas mais
lindas é a de uma gatinha brincando com seu cão, sem frescura ou cerimônia, no
meio da rua. Aliás, se eu soubesse como cachorros são chamarizes de gatas, teria
arrumado um na adolescência.
Ao perguntarem o nome do cachorro, o nome Marley soou como
uma verdadeira senha. Um código prontamente reconhecido pelos malucos que logo
mudaram o rumo da prosa e, quando dei por mim, uma rodinha já se formara ao
redor do cão e um baseado começou a circular. Olhei ao redor e vi que a rua
estava vazia. Dei uma baforada que me deixou empenado na hora.
Descobri que uma das garotas, a Flávia, morava na tal casa,
que era emprestada de um tio dela. Ela viera do interior do estado fazer
faculdade de psicologia na UFRGS.
Quando já estávamos todos bastante amigáveis e o cachorro já
deitava para dormir. Entramos na casa e Flávia coloca para tocar no iPod o
disco IV do Led Zeppelin. Gostei dela com os primeiros riffs de Black Dog e o que aconteceu até chegarmos a When the Levee Breaks você pode imaginar.
Moral da história: crianças, maconha te levará a falar com
estranhos e eventualmente fazer sexo com um deles.
Imoral da história: Marley salvou o dia!